26 de mar. de 2024

Um pouco de Clarice Lispector

"A alegria absurda por excelência é a criação." Nietzsche

UM SOPRO DE VIDA

Viver é uma espécie de loucura que a morte traz.

De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser.

Do zero ao infinito vou caminhando sem parar.

Tempo para mim significa a desagregação da matéria.

O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe.

O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta.

E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie.

Na eternidade não existe o tempo.

Mas há o hábito e o hábito anestesia.

Graças a Deus tenho o que comer. O pão nosso de cada dia.

Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? esgotaram-se os significados.

Escrevo ou não escrevo?

Saber desistir. Abandonar ou não abandonar - esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém.

Devo imaginar uma história ou dou largas à inspiração caótica? Tanta falsa inspiração. E quando vem a verdadeira e eu não tomo conhecimento dela?

Estou livre de destino. Será o meu destino alcançar a liberdade?

Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me na fonte seca e na luz fria.

"Escrever" existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta.

Quero que cada frase deste livro seja um clímax.

Eu escrevo para nada e para ninguém.

Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo.

Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra.

Minha nascente é obscura.

Sou sério e honesto e se não digo a verdade é porque esta é proibida.

E não aguento o cotidiano. Deve ser por isso que escrevo. Minha vida é um único dia. E é assim que o passado me é presente e futuro. Tudo numa só vertigem.

Viver é mágico e inexplicável.

Ser cotidiano é um vício.

Porque a própria vida já vem mesclada ao erro.

E haverá outro modo de salvar-se? Senão o de criar as próprias realidades?

O instante já é feito de fragmentos.

O que está escrito aqui, são restos de uma demolição de alma, são cortes laterais de uma realidade que me foge continuamente. Esses fragmentos de livro querem dizer que eu trabalho em ruínas.

Escrever é coisa sagrada onde os infiéis não têm entrada.

Antes tivesse eu permanecido na imanescença do sagrado Nada.

Eu também fiz meu lar em ninho estranho e também obedeço à insistência da vida. Minha vida me quer escritor e então escrevo. Não é por escolha: é íntima ordem de comando.

Nenhum comentário:

Postar um comentário